Por Jefferson Valentin, Rodrigo Spada e Luciana Moscardi Grillo
postado em 17/02/2024 23:12 / atualizado em 17/02/2024 23:12
Uma lenda urbana diz que, durante a corrida espacial, os americanos gastaram milhares de dólares para desenvolver uma caneta com altíssima tecnologia, que escrevesse na gravidade zero, enquanto os russos simplesmente usavam lápis.
Um dos maiores problemas enfrentados pelos IVAs mundo afora e, grosso modo, pelo ICMS por aqui, é a chamada “fraude carrossel”. Um imposto sobre valor agregado exige uma sistemática de débitos e créditos, de forma que o imposto incidente em uma etapa da cadeia produtiva possa ser aproveitado na etapa posterior. O problema ocorre quando surgem empresas constituídas, no meio da cadeia, normalmente por interposição fraudulenta, com o objetivo de sonegar o imposto.
Tais empresas emitem o documento fiscal, destacam o imposto, mas não efetuam qualquer pagamento. A empresa que compra tem direito de se creditar do imposto destacado. O Estado, que tem que honrar com o crédito do imposto, tenta promover a execução fiscal para cobrar aquele imposto destacado e não recolhido, e descobre que a empresa que emitiu o documento fiscal não possui patrimônio (nem seus sócios).
Seguindo a lógica do “quem faz por último tem o dever de fazer melhor”, a EC 132, da reforma tributária, prevê hipóteses em que o aproveitamento do crédito ficará condicionado à verificação do efetivo recolhimento do imposto incidente na operação anterior desde que: a) o próprio adquirente possa efetuar o recolhimento do imposto incidente nas suas aquisições de bens ou serviços ou b) o recolhimento do imposto ocorra na liquidação financeira da operação.
A solução de vincular o aproveitamento do crédito ao efetivo pagamento é eficaz, até porque a base ampla de incidência, associada ao crédito financeiro, aumenta o risco de fraudes. Porém, é uma medida que poderia gerar insegurança jurídica para o adquirente, pois o direito ao crédito dependeria da adimplência tributária do seu fornecedor. Daí as condições estabelecidas na EC.
Nesse cenário, foi aberto um positivo debate sobre o desenvolvimento de tecnologias adaptadas aos meios de pagamento para que, no momento em que o adquirente efetuar o pagamento ao fornecedor, o valor correspondente ao imposto seja automaticamente direcionado ao ente tributante (split payment). A ideia é genial, a verdadeira “caneta dos americanos”.
Ocorre que algumas propostas têm extrapolado a solução para o problema posto e apresentado detalhes (sempre eles) de operacionalização com altíssimo potencial de gerar outros problemas.
Quem desenvolve a tecnologia insiste que o split payment seja o único meio possível para se garantir a segurança jurídica ao adquirente e não é raro ouvir, inclusive, propostas de split payment obrigatório nas operações tributadas, como forma de acabar com a fraude. Tal obrigatoriedade é um devaneio, uma vez que limitar a dinamicidade dos mercados quanto aos meios de pagamentos seria quase o mesmo que tentar represar um rio caudaloso utilizando um balde. A solução geraria, na prática, um enorme mercado paralelo, informal e sem imposto. O remédio acabaria por matar o paciente.
Em outras versões da proposta surge a ideia de se colocar o pagamento como elemento necessário para a ocorrência do fato gerador, assim, implantado o split, se o adquirente da mercadoria do nosso exemplo não efetuasse o pagamento, o fato gerador não teria ocorrido e o imposto não seria cobrável do fornecedor. O ente tributante, dessa forma, seria uma espécie de “sócio da empresa” para suportar, junto com ela, a inadimplência do adquirente.
Essa ideia é péssima por uma série de motivos. Em primeiro lugar, se abriria espaço para outro tipo de fraude, a “inadimplência fake”. O pagamento poderia ser feito “por fora” e o fornecedor manteria o título em cobrança por um tempo, constituiria a provisão para devedores duvidosos (PDD) e, posteriormente, baixaria o título como irrecuperável e alegaria a não ocorrência do fato gerador.
O IBS passaria a ter um fato gerador suspensivo, visto que dependeria de um evento futuro e incerto, o pagamento. Isto alteraria a dinâmica de reconhecimento da decadência e exigiria que o Fisco, para lançar o imposto, tivesse que apresentar a prova do pagamento. Para provar o pagamento, seria preciso dar acesso irrestrito ao Fisco a todos os meios de pagamento possíveis, assim como todas as contas bancárias, de empresas, sócios e administradores.
Dessa forma, ou se criaria um imposto “infiscalizável” ou um estado policialesco sobre todas as operações bancárias. O ente tributante, na condição de “sócio na inadimplência” se sentiria no direito de exercer seus poderes de sócio, criando limitações de prazos para pagamento ou número de parcelas, exigindo garantias para pagamento a prazo ou a cobrança judicial e/ou protesto do título, criaria presunções de pagamento em determinadas situações, ou seja, teria um forte incentivo econômico para intervir em toda a dinâmica de mercado que deve ficar entre as partes do contrato. A Fazenda Pública teria que ser ouvida em toda ação de cobrança, visto que cada pagamento dela decorrente poderia materializar um crédito tributário.
Possibilitar que o adquirente possa efetuar o recolhimento do imposto incidente nas suas aquisições, no entanto, é muito mais simples e fácil de se implementar e igualmente eficaz. Além do diferimento clássico, que a administração pode estabelecer pontualmente, a legislação pode permitir, em determinadas transações, que as partes acordem quem efetuará o recolhimento do imposto. Quando acordarem que o recolhimento seja feito pelo adquirente, tal informação constaria do documento fiscal emitido e uma guia de recolhimento avulsa seria gerada, referente exclusivamente àquele documento fiscal, para ser recolhida pelo adquirente. O fornecedor continuaria na condição de contribuinte e o adquirente, nesse caso, figuraria no polo passivo como responsável solidário. Ao recolher, o imposto constaria como pago na conta fiscal do fornecedor junto ao ente tributante, e como crédito para o adquirente, garantindo segurança jurídica a todos e permitindo o condicionamento do crédito ao pagamento, evitando a fraude carrossel. Esse seria o lápis russo.
O split payment, integrando o que, em essência, seria o mesmo procedimento anteriormente descrito, aos meios de pagamento, seria facultativo e as duas formas coexistiriam permitindo às partes utilizar o que lhes fosse mais conveniente. E claro, nada de vincular o pagamento como elemento para constituição do fato gerador.
Às vezes, o maior salto tecnológico não resulta tão somente do desenvolvimento de novos algoritmos ou novas estruturas de Tecnologia da Informação, mas de entender os diversos interesses envolvidos, repensar velhos conceitos, e criar modelos concebidos estritamente para a solução do problema posto.
Jefferson Valentin é Auditor Fiscal da Receita Estadual do Estado de São Paulo, formado em letras e ciências contábeis, MBA em gestão pública e mestrando em economia. Membro da comissão técnica da Febrafite, coautor dos livros “Manual do ITCMD” e “Uma lei complementar para o ITCMD” e autor do livro “Holding, estudo sobre a evasão fiscal do ITCMD no planejamento sucessório”.
Rodrigo Spada é Auditor Fiscal da Receita Estadual de São Paulo e presidente da Febrafite (Associação Nacional das Associações de Fiscais de Tributos Estaduais) e da Afresp (Associação dos Auditores Fiscais da Receita Estadual de São Paulo). É formado em Engenharia de Produção pela UFSCAR, em Direito pela UNESP, com MBA em Gestão Empresarial pela FIA.
Luciana Moscardi Grillo é Auditora fiscal da Receita Estadual de São Paulo, graduada em engenharia civil e direito, MBA em Gestão e Administração Tributária pela Universidade de Ensino a Distância de Madrid, avaliadora certificada da ferramenta TADAT e membro da Comissão Técnica da Febrafite.
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Artigo publicado na Folha de S. Paulo. CLIQUE AQUI para acessar no site do jornal!
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