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Artigo: ITCMD incidente sobre doações e heranças bilionárias provenientes do exterior

postado em 03/11/2020 13:54 / atualizado em 03/11/2020 14:00

O Supremo Tribunal Federal deu início, na última sexta-feira (23/10), ao julgamento do Tema nº 825 de Repercussão Geral, que dispõe sobre a competência legislativa dos estados para tributar a transmissão de bens, por doação ou a título de herança, nas situações em que o doador seja domiciliado no exterior ou quando o de cujus possuía bens, era domiciliado ou teve inventário processado em país estrangeiro. O caso foi levado ao Plenário do Tribunal em virtude do Recurso Extraordinário nº 851.108, interposto pela Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, que defende a constitucionalidade da tributação instituída pela Lei Paulista do ITCMD.

Os processos que tratam dessa questão têm se avolumado na Justiça, encontrando-se todos eles parados, à espera do julgamento do Supremo, há mais de cinco anos. Os casos chamaram a atenção da Procuradoria Geral do Estado e também da Secretaria da Fazenda em virtude dos elevadíssimos valores envolvidos nas transações.

Do ponto de vista jurídico, aqueles que reputam inconstitucional o art. 4º da Lei Paulista nº 10.705/2000 se apoiam no art. 155, §1º, inc. III da Constituição Federal para defender a suposta necessidade de edição, pelo legislador nacional, de lei complementar para regular a competência dos Estados-membros para instituir o ITCMD nas hipóteses em que haja algum elemento de conexão fora do país.

A Procuradoria Geral do Estado defende que não se pode interpretar isoladamente esse dispositivo constitucional sem conectá-lo com o art. 24, § 3º, da Constituição Federal e também com o art. 34, § 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Na ausência de lei complementar sobre o assunto – agravada pela omissão do Congresso Nacional há mais de 25 anos –, o próprio texto constitucional abre espaço para a competência legislativa plena dos estados-membros, até que sobrevenha a correspondente lei de caráter nacional.

Para além de uma questão de hermenêutica constitucional, a cobrança do ITCMD nas hipóteses de transmissão causa mortis ou doação de bens localizados no exterior, ou de lá provenientes, visa atender ao postulado da “justiça fiscal”.

Em grande parte dos casos analisados, o que se viu foi a utilização de uma manobra meramente formal para fugir do recolhimento do ITCMD, coincidindo com o período recente em que a Administração Tributária tem trabalhado fortemente para ampliar o enforcement e assegurar a aplicação da tributação a todos que apresentem a mesma manifestação de riqueza.

Por vezes, o planejamento tributário sucessório se inicia com a remessa de valores ao exterior para integralização de capital e constituição de empresas offshores, ou “empresas de prateleira”, sediadas normalmente em reconhecidos paraísos fiscais, tais como Ilhas Virgens Britânicas, Ilhas Cayman ou Panamá.

Em seguida, ocorre a doação das participações societárias aos herdeiros e, ato contínuo, tais valores retornam ao Brasil, já em nome dos descendentes. Outras vezes, o patriarca da família imigra provisória ou definitivamente para outro país e doa seu patrimônio, localizado ou não no Brasil, aos herdeiros aqui residentes.

Ora, a dissimulação de propósitos mostra-se evidente e, ao se debruçar sobre esse ponto, os Memoriais enviados aos ministros do STF consignaram que o sistema jurídico que tributa a herança dos trabalhadores e deixa indene e perfeitamente hígida a fortuna de grandes empresários e banqueiros que se socorrem desse tipo de “planejamento tributário” com a perspectiva de nada recolherem a título de imposto, configura um privilégio inaceitável, que vai de encontro à necessidade de tratamento isonômico (igualdade material) na imposição fiscal e que não se coaduna com regras e princípios basilares consagrados na CF/88, sobretudo com o de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com erradicação da pobrezae das desigualdades sociais e com o de promover o bem de todos.

O professor Bruno Carazza, em artigo publicado no dia 26 de outubro de 2020, sob o título “Dando nome aos bois”, no jornal Valor Econômico, assim se manifestou a esse respeito: “É bem verdade que nossa Constituição garante a qualquer pessoa recorrer ao Judiciário quando entender que seus direitos estão sendo lesados. Mas quando empresários bilionários se valem da Justiça para pagar menos impostos, eles perdem a legitimidade de reclamar do tamanho da carga tributária no Brasil e de suas distorções, pois eles são ampliados muitas vezes por privilégios criados em seu benefício. Também não dá mais para admitir que a cúpula do Judiciário se valha de interpretações literais das normas para agravar um sistema de concentração de renda que se perpetua por décadas”.

Ainda sob a perspectiva pragmática, o exercício da competência tributária plena por parte dos estados-membros vem ao encontro do dever de responsabilidade na gestão fiscal (artigos 163 e ss. da Constituição Federal). Não é por outra razão que a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/00) considera, em seu art. 11, a instituição de tributos da competência constitucional do ente da Federação como um dos requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal, sob pena de vedação à realização de transferências voluntárias de recursos, transferências essas disciplinadas no art. 25 da mesma lei complementar.

O legislador constituinte, sábio, tratou de consignar no artigo 24, § 3º da Magna Carta a autonomia dos entes federados para que não tivessem condicionado o exercício da sua responsabilidade fiscal a um processo legislativo que não fosse o de sua própria competência.

Num momento histórico de sucessivas crises, agravado recentemente por um cenário de pandemia, que impõe, de um lado, a obrigatoriedade de prestação de serviços públicos e, de outro, sobriedade e sapiência no controle das contas públicas, uma decisão pela impossibilidade da tributação de patrimônios estruturados internacionalmente pode ser devastadora.

No restrito universo de quase duas centenas de processos, o estado de São Paulo está deixando de arrecadar, nos últimos cinco anos, um valor próximo a R$ 2,7 bilhões. A esse montante somam-se os valores lançados de ofício pelo Fisco, mas que ainda aguardam julgamento administrativo definitivo (R$ 225 milhões), e também aqueles que foram pagos espontaneamente pelos contribuintes e que podem ser objeto de repetição de indébito, caso a tese fazendária não se sagre vencedora (R$ 270 milhões). Até aqui, estamos falando em uma frustração de receita tributária no importe de quase R$ 3,2 bilhões.

Se não fosse o bastante, a Secretaria da Fazenda estima que eventual decisão desfavorável poderá representar perda de arrecadação de aproximadamente R$ 2,2 bilhões, nos próximos cinco anos. Fala-se, no final das contas, de um total de R$ 5,4 bilhões que poderão deixar de ingressar no tesouro estadual.

Com a abertura do plenário virtual, na última sexta-feira, o min. Dias Toffoli, na condição de relator, proferiu voto pela inconstitucionalidade do art. 4º da Lei Paulista nº 10.705/2000, ao mesmo tempo em que modulou os efeitos da decisão para que produza efeitos apenas quanto aos fatos geradores que venham a ocorrer a partir da publicação do respectivo acórdão.

Atentou o min. relator para a legislação editada por diversas outras unidades federadas, prevendo a cobrança do ITCMD sobre doações ou bens objetos de herança provenientes do exterior e, ainda, para algumas decisões proferidas no âmbito da própria Corte, em que foi reconhecida a possibilidade de os estados, com base na competência legislativa plena, editarem leis prevendo a cobrança do ITCMD nas hipóteses aqui descritas.

Após o min. Edson Fachin acompanhar o voto do relator, sobreveio o pedido de vista do min. Alexandre de Moraes, de modo que o julgamento se encontra, por ora, suspenso.

A não incidência de tributação sobre tais patrimônios representaria regressividade em um tributo que incide sobre o patrimônio e que é utilizado em diversos países do mundo justamente com a função de melhorar a progressividade da matriz tributária, garantindo a função distributiva do Estado. Tal perspectiva arruinaria qualquer senso de justiça fiscal.

Ademais, é importante destacar que, em todas as situações previstas na legislação paulista impugnada, o responsável pelo pagamento do tributo (o beneficiado direto pela doação ou herança) é residente ou domiciliado no estado de São Paulo.

Pontue-se, ainda, que, embora a Resolução do Senado Federal nº 09/92 autorize os estados a aplicar alíquotas de até 8% na tributação do ITCMD, o estado de São Paulo adota uma alíquota única, de 4%, para as transmissões sujeitas a esse imposto.

A expectativa do estado de São Paulo, compartilhada pelos meios de comunicação, é a de que o Supremo Tribunal Federal irá corrigir essa grave distorção, admitindo a competência legislativa plena dos Estados para tributar a transferência de bens oriundos do exterior, realizando, com isso, a almejada isonomia material.

EDUARDO WALMSLEY SOARES CARNEIRO – Procurador do Estado de São Paulo. Mestre em Direito do Estado pela USP.

JEFFERSON VALENTIN – Agente fiscal de rendas do estado de São Paulo, graduado em Letras pela UNESP e em Ciências Contábeis pela Universidade Católica Dom Bosco, MBA em Gestão Pública pela Universidade Anhanguera UNIDERP. Coautor do livro “Manual do ITCMD-SP”, pela editora Letras Jurídicas.

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Artigo originalmente publicado no site Jota, em 29/10/2020. A publicação está disponível para assinantes no link: https://bit.ly/3jRHiHW

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